Here's your letter

Oi, pai. Hoje faz um ano e meio que não lavo seu carro.
Sei disso porque faz um ano e meio desde que consegui a habilitação.
Também faz um ano e meio desde que você se foi (ou o carro não estaria nesse estado).
Muita coisa aconteceu nesse meio tempo e fico imaginando como reagiria a todas essas mudanças. Pra começo de conversa, não foi apenas seu carro que destruí; sua camiseta do Metallica está há dois dias de molho em um balde. Fiz de tudo para salvá-la, mas acho que as manchas de tinta não sairão. Não acho que você vá se importar, porque são as marcas que você sempre quis ver em mim.
Sim, agora sou oficialmente uma acadêmica de medicina. Vou cuidar do coração das pessoas, como você disse que seria bonito fazer quando eu tinha seis anos de idade. Se eu ligasse te contando que finalmente passei no vestibular, você ia dizer: eu já sabia. Ainda tenho a folha de caderno que você deixou em cima da mesa da cozinha três anos atrás, antes do meu primeiro vestibular. Está escrito assim: boa sorte. Tenho certeza que vai dar tudo certo, depois eu vou dizer: eu já sabia.
Deu tudo errado. Sabia nada.
Vou ser sincera, então. Esse negócio de cuidar do coração das pessoas parecia assustador demais. Eu também achava que era uma coisa menos bonita do que ingrata. Se você salva seu paciente, ele agradece a Deus. Se o paciente morre, a culpa é do médico. Eu não entendia nada de altruísmo naquela época e por dois anos, meus motivos para estudar medicina eram completamente egoístas. Na minha primeira tentativa, era apenas uma desculpa para que você me deixasse sair de casa, morar e estudar em outro lugar. Talvez você não tivesse percebido, mas aquela cidade estava me deixando louca. Acredito que houve indícios disso, como a minha psicóloga dizendo que não ia me deixar sair do consultório sem chamar um psiquiatra pra me medicar. Ou a minha parede do quarto, completamente riscada. Na segunda tentativa, que nem chegou ao fim por causa ds minhas crises de pânico, só queria esfregar na cara de algumas pessoas que eu podia. No fim das contas, me convenci de que o melhor a fazer era estudar algo que eu gostasse e seguir em frente, apesar de tudo.
Eu consegui entrar em psicologia, e quando te contei que havia passado no vestibular, você até chorou. Nunca te vi tão feliz e orgulhoso. Acontece que você achava que eu havia passado em medicina, mas era psicologia. Me desculpe, mas não vou me desculpar pela decepção. Apesar de nunca ter ouvido isso de ti, minha mãe disse que você estufava o peito pra dizer que sua menina estava numa federal e ainda tirava do bolso aquele xerox amassado do meu boletim da segunda série, quando consegui tirar 10 em todas as matérias, até em educação física! Apesar de nunca ter me desculpado pela "decepção", sinto que você me perdoou. Um passarinho me contou que, na UTI, você disse para a psicóloga que queria que eu fosse tão boazinha quanto ela, e tinha certeza de que eu seria. Esse foi seu último pedido, então agora nem sei mais se dizer que estudarei medicina vai te decepcionar ou orgulhar.
Finalmente, entendi o que significa ser médica. É saber que quem está no leito é o pai de alguém, a mãe de alguém, o filho de alguém. É lutar pela vida dos outros do mesmo jeito que lutaram pela sua: até o final. Hoje sei que você não mereceu o que aconteceu contigo e passei muitas noites me perguntando se sua vida valeu a pena. Foi muito de repente, sabe? Você disse que já sabia que era o fim, mas ninguém realmente acreditou nisso. Qual foi o melhor dia da sua vida? Qual o propósito de viver? Você alcançou todos os seu objetivos? Pensando nessas coisas, me senti muito culpada sabendo que seu único objetivo era me ver feliz e isso nunca aconteceu. Agora sei que minha vida valerá a pena se, algum dia, eu conseguir salvar um pai como você. Sinto muito que você não possa ver isso. Essa foi a primeira lição que aprendi contigo: amor ao próximo.
Ainda acho muito tênue a linha entre amor ao próximo e falta de amor próprio. Já te contei de um episódio de Grey's Anatomy em que, num acidente de trem, duas pessoas ficam presas numa barra de ferro e os médicos só podem remover uma delas? Elas tem que escolher quem vive e quem morre. Creio que, se fosse eu atravessada pela barra, escolheria morrer pra salvar a outra pessoa. Amor ao próximo ou falta de amor próprio? Sei lá, não entendo muito bem esse negócio de amor, mas o que sei, aprendi contigo. Você me deixou outra carta, duas semanas antes de partir. Ela dizia: amor da minha vida, pode ter certeza que eu sempre te amei e vou te amar até o resto da minha vida. Eu sinto muita saudade de você. Você é meu tudo, eu vivo somente por você. E aí você morre, duas semanas depois. Como você queria que eu me sentisse? Disse que vivia só por mim... E depois morreu? Eu me achava uma merda, e se eu era sua vida, ela era uma merda também. Senti raiva. Depois me senti confusa. Não entendi porque me amou, eu nunca fiz nada por você! Nada... Foram seis meses me sentindo péssima. É horrível admitir isso, mas finalmente consigo: chorei menos por tristeza que por remorso. Mas essa foi a segunda lição mais importante que me ensinou: o amor não pede nada em troca. Percebi isso amando outras pessoas, de maneira completamente irracional, porque não havia nenhum motivo sensato pra amá-las. Também não há nenhum motivo sensato pra ser médica, porque não são apenas os pais bonzinhos que terei que salvar. Terei que atender com um sorriso no rosto até mesmo as pessoas que chamam Jair Bolsonaro de "Bolsomito". Mas é assim mesmo...
Queria falar de outras coisas além da vida acadêmica, mas não há como fugir do assunto. Sabe a sua preciosa Hilux? Pagará um semestre da faculdade. A sua loja? Garante mais dois anos. O Corolla? Esse eu não vendo, mas está sujo de areia desde o carnaval. Arranhei, nunca mais lavei, mandei os pontos pra sua carteira e fiz mais quilômetros nesse meio tempo do que você fez em três anos. É um carro fantástico, lamento que não tenha aproveitado tanto quanto eu, porque odiava até mesmo sujá-lo. A minha mãe? Lembra de quando ela te acordava sábado de manhã porque queria limpar as janelas? Ela está morando comigo agora e só não faz isso porque moramos no segundo andar. Ela sente sua falta, mas acho que está apaixonada pelo cara do NCIS. E quanto a sua camiseta favorita, sei que apenas olharia as marcas de tinta e diria: eu já sabia. Agora vou cuidar do coração das pessoas.

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