Cloro, urina e lágrimas
Disseram pra mim que Freud dizia que a vida é uma repetição da infância. Não sei se ele disse isso, porque da autoria dele conheço apenas um livro e alguns xerox da faculdade. Na verdade, pouco importa se ele disse ou não; eu estou dizendo agora com base na minha vivência. Talvez isso não resulte em um artigo acadêmico de grande contribuição para a psicologia, mas tenho certeza de que sou um estudo de caso interessante para a minha terapeuta.
Afinal, se é verdade que vivemos ciclos repetitivos da aurora de nossas vidas, hoje estou vivendo um dia nublado dos meus cinco anos. É o primeiro sábado das férias, e a minha sorte de ser uma criança esquisita é também ser mimada. Explico: duvido que teria "amigos" caso não tivesse uma piscina em casa. Se amigos fossem insetos polinizadores, a piscina seria uma flor com pétalas e sépalas espalhafatosas. Se amigos fossem saprófitos, a piscina seria como um animal morto. Se amigos fossem como o polo sul de um ímã... OK, vocês entenderam. Mas só a piscina não basta. É preciso que uma força divina conspire ao meu favor: o céu precisa se abrir e não pode chover hoje.
Rezo para que não chova e prometo ser uma pessoa melhor se for atendida.
Não chove.
Esqueço o que prometi.
As pessoas chegam e pulam da beira da piscina sem titubear. Muita coisa pode dar errado nessa brincadeira, mas elas não parecem se importar. E ignoram o risco de se afogar ou escorregar no chão molhado e quebrar a coluna. Tampouco importam a temperatura congelante da água, o gosto de cloro e a chance de estar engolindo urina diluída de outras crianças. Invejo essa espontaneidade, mas me reservo a sentar na escada e molhar os pés primeiro.
Eles insistem para que eu entre. Está gelado, mas você se acostuma. Você está usando bóias de braço, não vai se afogar. Já faz tempo que você comeu, não vai ter uma congestão agora. E depois das minhas respostas negativas, tentam uma abordagem mais radical: empurrar.
Quando caio na água é ruim. É mais ou menos como num poema de Chacal: me confundo quando nado, me conformo quando boio, me convenço quando afundo. Mas passo a gostar da situação e me divertir como nunca, até as cinco e meia da tarde, quando as outras crianças começam a receber ligações dos pais que estão vindo buscá-las. Elas saem da água e vão para a ducha. Eu continuo ali, sozinha.
Começa uma chuva de verão. A temperatura da água está muito quentinha agora. Mas ao emergir os ombros para fora, sinto um vento cortante na minha pele.
Por que vocês insistiram tanto para que eu entrasse? Pra sair no melhor momento? Seria muito ruim sair agora.
Mas não sou mais essa criança. Tenho meus vinte anos e sou uma sombra dela. Posso ter tirado o aparelho, alisado o cabelo, emagrecido um pouquinho, mas ainda sou medrosa.
Você insiste para que eu mergulhe em nós, a despeito de todos os riscos (reais ou imaginados pela mente precavida de uma pessoa que foi criança quando o Merthiolate já não ardia mais). "Eu te amo" é o novo "a água está quentinha". "Você é a única" é o novo "ninguém mijou aqui". "Eu nunca faria algo pra te machucar" é o novo "não vai chover". "Nunca vou te abandonar" é o novo "você não vai se afogar". E tudo isso me parece irresistível demais. Mergulho de cabeça e seis da tarde estou sozinha.
Depois de ficar resfriada por continuar na piscina depois que começou a chover, fico pensando se não teria sido melhor ficar dentro de casa assistindo Bob Esponja, tomando meu Yakult e comendo Passatempo. E me pergunto por que não me ouvi em primeiro lugar. Ou por que esperei tanto que alguém mergulhasse comigo.
Se Freud estivesse aqui, diria que farei isso todo verão, até me afogar.
Obs.: não é um texto autobiográfico. Não tenho piscina em casa.
Afinal, se é verdade que vivemos ciclos repetitivos da aurora de nossas vidas, hoje estou vivendo um dia nublado dos meus cinco anos. É o primeiro sábado das férias, e a minha sorte de ser uma criança esquisita é também ser mimada. Explico: duvido que teria "amigos" caso não tivesse uma piscina em casa. Se amigos fossem insetos polinizadores, a piscina seria uma flor com pétalas e sépalas espalhafatosas. Se amigos fossem saprófitos, a piscina seria como um animal morto. Se amigos fossem como o polo sul de um ímã... OK, vocês entenderam. Mas só a piscina não basta. É preciso que uma força divina conspire ao meu favor: o céu precisa se abrir e não pode chover hoje.
Rezo para que não chova e prometo ser uma pessoa melhor se for atendida.
Não chove.
Esqueço o que prometi.
As pessoas chegam e pulam da beira da piscina sem titubear. Muita coisa pode dar errado nessa brincadeira, mas elas não parecem se importar. E ignoram o risco de se afogar ou escorregar no chão molhado e quebrar a coluna. Tampouco importam a temperatura congelante da água, o gosto de cloro e a chance de estar engolindo urina diluída de outras crianças. Invejo essa espontaneidade, mas me reservo a sentar na escada e molhar os pés primeiro.
Eles insistem para que eu entre. Está gelado, mas você se acostuma. Você está usando bóias de braço, não vai se afogar. Já faz tempo que você comeu, não vai ter uma congestão agora. E depois das minhas respostas negativas, tentam uma abordagem mais radical: empurrar.
Quando caio na água é ruim. É mais ou menos como num poema de Chacal: me confundo quando nado, me conformo quando boio, me convenço quando afundo. Mas passo a gostar da situação e me divertir como nunca, até as cinco e meia da tarde, quando as outras crianças começam a receber ligações dos pais que estão vindo buscá-las. Elas saem da água e vão para a ducha. Eu continuo ali, sozinha.
Começa uma chuva de verão. A temperatura da água está muito quentinha agora. Mas ao emergir os ombros para fora, sinto um vento cortante na minha pele.
Por que vocês insistiram tanto para que eu entrasse? Pra sair no melhor momento? Seria muito ruim sair agora.
Mas não sou mais essa criança. Tenho meus vinte anos e sou uma sombra dela. Posso ter tirado o aparelho, alisado o cabelo, emagrecido um pouquinho, mas ainda sou medrosa.
Você insiste para que eu mergulhe em nós, a despeito de todos os riscos (reais ou imaginados pela mente precavida de uma pessoa que foi criança quando o Merthiolate já não ardia mais). "Eu te amo" é o novo "a água está quentinha". "Você é a única" é o novo "ninguém mijou aqui". "Eu nunca faria algo pra te machucar" é o novo "não vai chover". "Nunca vou te abandonar" é o novo "você não vai se afogar". E tudo isso me parece irresistível demais. Mergulho de cabeça e seis da tarde estou sozinha.
Depois de ficar resfriada por continuar na piscina depois que começou a chover, fico pensando se não teria sido melhor ficar dentro de casa assistindo Bob Esponja, tomando meu Yakult e comendo Passatempo. E me pergunto por que não me ouvi em primeiro lugar. Ou por que esperei tanto que alguém mergulhasse comigo.
Se Freud estivesse aqui, diria que farei isso todo verão, até me afogar.
Obs.: não é um texto autobiográfico. Não tenho piscina em casa.
Comentários
Postar um comentário