O leão por dentro - pulsações

É mais fácil amar alguém que está mal, que é pobre, doente ou vulnerável, talvez por isso tenha escolhido ser médica. Às vezes eu sinto que a pessoa vai me rejeitar, ou que não me ama mais, e passa a ser muito doloroso continuar amando alguém assim, então eu tenho que fazer algum mal pra ela.
Esses dias a minha mãe foi jogar o lixo fora, e tinha um cara dormindo no container de lixo. Ele disse "coloca ali no cantinho". Um ser humano, no lixo, junto com papéis sujos de merda, restos de comida, fraldas e absorventes usados, e tudo aquilo que consideramos não nos servir mais, tudo aquilo que era repugnante demais pra continuar em nossas casas.
Era um ser humano no lixo. Fiquei me perguntando se ele não tinha família, sentimentos, alguma razão pra ainda estar vivo.... Ou se era tão repugnante que a família precisou descartá-lo, como se descarta o lixo do banheiro antes que comece a feder. Ou se ele era como uma boneca de plástico com a perna quebrada que uma criança não quis mais, e que agora só serve pra ocupar espaço.
Eu sempre fiz de tudo para as bonecas não quebrarem as pernas, mas se quebrassem, passava a cuidar mais delas do que das outras. A boneca sem perna despertava mais afeto do que as que tinham 2 pernas. Talvez eu até fizesse uma cadeira de rodas improvisada, ou faria outra boneca ser médica e dar um jeito de reimplantar a perna da outra.
Era tão mais fácil amar a boneca sem perna! E é mais fácil amar seres humanos vulneráveis também. Mas a parte engraçada disso tudo é que eu pareço precisar mais dessas pessoas do que elas de mim.
Houve um momento em que o ****** (até escrever o nome dele é doloroso) virou de costas e eu perguntei se ele não me amava mais. E ele disse "não sei de mais nada". O pior é que ele estava tão alterado nessa hora que eu não ia conseguir resolver o problema. Tive que agredi-lo. Só se eu visse ele mal conseguiria me permitir sentir algum afeto. Não conseguia parar de bater, e o fato dele estar se divertindo (gostava de apanhar, e mesmo sendo magrelo, meus golpes não tinham tanto efeito). Só parei quando ele já estava no chão. Quando ele caiu, ele derrubou o conteúdo de uma lixeira, e eu disse "fica aí que é teu lugar. Lugar de lixo é no lixo, seu merda". Comecei a chorar na hora e senti ímpeto de cuidá-lo, de pegar no colo e protegê-lo.... De mim mesma.
Fiquei pensando no cara dormindo no lixo, matéria orgânica sem valor ao lado de matéria orgânica sem valor. Era assim que eu via ele, mas ele se via assim? O ****** não se via assim, e foi inútil a minha tentativa de despertar isso nele, pra depois fazê-lo sentir que ia protege-lo de todos os sentimentos ruins de vazio e falta de propósito.
Meu único consolo é que a humanidade criou ocupações para pessoas como eu. Ser médica é um jeito de estar em contato diário com a miséria, satisfazer minha necessidade de cuidar e ainda ganhar dinheiro pra caralho com isso. É por isso que eu acho esse negócio de altruísmo pura hipocrisia, e essa história de "ain, eu sempre quis medicina, desde criancinha" conversa pra boi dormir. O ser humano é o único animal que finge oferecer uma coisa de que ele mesmo precisa, no caso, cuidados e afeto.

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