Love it, live it, leave it

Como sempre, não era por causa do objeto em si, mas por tudo o que ele representava.
Era apenas uma edição de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Não estava surrada, nem rasurada - ela sempre cuidara bem dos próprios livros. As páginas haviam se tornado ligeiramente mais amareladas, e o detalhe metálico no título da capa estava riscado; coisas que aconteceram pelo uso, não por descuido. Ela tinha apenas 8 anos quando o ganhou. 10 anos depois, ainda se lembrava como se fosse ontem.
Sua mãe nunca havia lhe comprado livros. Não por maldade, mas porque diante das dificuldades financeiras, livros não eram prioridade. Mas seu pai sempre se esforçava para lhe dar algo. Quando ainda era pequena, às vezes seu pai chegava do trabalho e lhe dava uma revistinha de colorir, ou uma revista em quadrinhos. Ela pulava em seu colo e o beijava para agradecer, e seu sorriso de poucos dentes de leite valiam o dinheiro gasto.
Ler se tornou um hábito. Toda semana, ela pegava um livrinho na biblioteca. Um dia, ela assistiu Harry Potter e a Pedra Filosofal. Pouco tempo depois, assistiu o filme da sequência. Havia se encantado pela história. Por isso, uma tarde na livraria ficou totalmente encantada ao ver os livros da saga pela primeira vez. Obviamente, sua mãe não lhe comprou nenhum, alegando que era um livro caro, muito grande para a idade dela, que ela jamais leria. Mas ela discordava.
No seu aniversário de oito anos, ela nem tinha esperança de ganhar alguma coisa. Já era quase meio dia, seu pai ainda não havia voltado do trabalho, e a única coisa que havia ganhado era o bolo que sua mãe estava preparando desde cedo. Mas quando ele chegou, pegou a garotinha no colo, beijou seu rosto diversas vezes, e desejou feliz aniversário. Então propôs que fossem dar uma volta. Ela mal podia acreditar quando pararam em frente a livraria, e ele disse que ela poderia escolher qualquer coisa que quisesse. No fundo, ele já sabia de algo que ela queria há muito tempo.
Ela pegou o terceiro livro da série apenas porque queria uma história nova sobre Harry, mesmo que mais tarde tenha comprado os outros e lido. Esse livro acabou sendo a lembrança física mais marcante que hoje ela guarda do pai.
Anos mais tarde, quando ele faleceu, ela foi passar um tempo com o namorado, que morava em outra cidade. Levou o livro. Relia devagar, relembrando não apenas a história do livro, mas também a história que havia o objeto.
Na pressa de chegar ao aeroporto a tempo para voltar pra casa, o livro acabou esquecido no criado-mudo, no lado direito da cama do namorado. Apesar de todo o valor emocional, ela não se importou muito. Afinal, ele poderia mandar pelo correio.
Não mandou. Disse que ela deveria buscar pessoalmente. Era apenas uma brincadeira, uma desculpa para fazê-la voltar. Mas ele realmente não mandou.
E a viagem foi sendo adiada cada vez mais. O relacionamento foi se desgastando cada vez mais. As discussões ao telefone eram cada vez mais frequentes, até o dia em que a situação se tornou insustentável. Ela sabia que ele não deveria estar aguentando tanto tempo sozinho. Ele tinha outra, ele estava estranho, ela sabia. Por que ele precisava ser tão escroto, justo agora que ela mais precisava de apoio e compreensão? Mas ela não precisava passar por isso.
Ela cansou e não valia a pena insistir em algumas coisas. Foi até a livraria e comprou outra edição, que nunca chegou a ler. Apenas colocou na estante para ocupar o lugar do antigo livro, ao lado da foto do pai. Com exceção da família, algumas coisas devem ser amadas, vividas e esquecidas.

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