Crise de fé

Papai teve uma crise de fé uma vez. Passou a se chamar de "escritor não-praticante". Seus dois primeiros livros publicados foram bons, mas o terceiro foi particularmente excelente. Mudar para a Califórnia estragou tudo, e nós sabemos disso. Seus lábios envolveram a grande ereção de Hollywood e chuparam com força. Foi assim que seu livro genial, chamado "Deus nos odeia" acabou virando uma comédia romântica estúpida. E foi assim que nossas vidas começaram a desandar.
Não é culpa de Los Angeles. E por mais que não seja culpa de minha mãe, meu pai perdeu sua musa. O trabalho de meu pai era simplesmente escrever, e ele dizia que escrever era como ter lição de casa todos os dias pelo resto da sua vida. Como eu me sentia quando lia seus trabalhos? Era difícil aceitar que tudo era verdade. As drogas, as garotas e o sexo, a raiva e a dor que ele sentia... Era um pouco invasivo, e meio desolador. Mas tudo foi muito pior na crise de fé. Se ele não escrevia nada, era porque não sentia nada.
As besteiras que ele fazia... Ele sempre estragava tudo quando minha mãe estava prestes a lhe dar outra chance. Agora eu consigo entendê-lo melhor, sei que ele não podia evitar. Pensei que sentar ao seu lado pra dizer que largaria a faculdade e seguiria seus passos inflaria seu ego, mas não. Acho que ele apenas sentiu pena, e também sua parcela de culpa, como se todo o seu histórico de erros e tentativas de me afastá-los deles tivesse culminado nisso: em tudo o que ele não queria pra mim.
Existe uma terra chamada Hipocrisia, onde meu pai é o rei. Certa vez, cheguei ao apartamento dele e encontrei uma garota nua em seu quarto. Eu tinha malditos 12 anos. Meu primeiro baseado foi com a erva que encontrei escondida em uma latinha de Band-Aid no armário do banheiro dele. Meu primeiro cigarro foi um Marlboro roubado de um de seus maços diários. Meu primeiro porre foi com o whisky que nunca faltava naquela casa. E a única coisa que ele fazia era me reprimir, dar sermões, e torcer para que eu me tornasse lésbica. Ele não queria que um dia eu tivesse a infelicidade de me envolver com alguém como ele. Ironicamente, acabei me tornando uma versão feminina (e para a infelicidade dele, heterossexual) de meu pai.
E agora eu entendo seus motivos. Quando sua vida é escrever, você se torna escravo disso. Você sofre quando senta na frente da Olivetti com uma folha em branco (eu sou uma pessoa analógica em um mundo digital), e quando finalmente consegue algo, nada parece bom o suficiente. E nada vai ser bom o suficiente se não for verdadeiro. Então a única alternativa e sair por aí para cortejar a desgraça: encher a cara na Sunset, transar tanto quanto for possível e talvez até usar drogas. Porque dormir cedo, casar virgem e viver numa casa de cercado branco é muito prosaico para a literatura do século XXI. Nós estamos desesperados por sentir algo de verdade.
Ter uma crise de fé é se sentir como uma prostituta velha, cansada e com o útero prestes a cair. Papai avisou. Se eu queria ter dado atenção aos seus avisos? Não me arrependo de nada, e acredito que ele também não. Podemos passar por cima dessas crises. O que me consola é saber que apesar de tudo, consigo visualizar eu e minha mãe nos livros do meu pai, independentemente de toda a merda que há nos conflitos periféricos. O sentimento verdadeiro que conseguia mover os dedos do meu pai sobre as teclas da máquina de escrever era o amor, por mim e minha mãe. Ele não percebe a sorte que tem por sentir algo assim. Espero que um dia eu também consiga.
Esse texto só foi escrito por verdadeira admiração pelo meu pai e por seu trabalho.


Comentários

  1. Parece até que acabei de ler mesmo uma carta da Becca! Caramba...

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  2. Missão cumprida, então. ;)
    Obrigada por ler.

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