Essa sociedade

Uma família tem um casal de filhos. Aparentemente, tanto menina como menino recebem a mesma educação; estudam na mesma escola, ganham o mesmo valor de mesada, recebem presentes de mesmos valores. Mas apenas a menina é incentivada a ajudar a mãe na limpeza e na cozinha, porque "ela deve ser prendada, para um dia fazer tais coisas para o marido". O garoto começa a namorar, e é encorajado pelo pai, orgulhoso de ter criado "um garanhão". Mas quando descobre que a filha também tem um relacionamento, logo começa com sermões e conversas sobre como se comportar. Ele passava horas no banheiro, e sua mãe ria e chamava isso de "fase dos banhos longos", que sua irmã, graças a Deus, jamais teve, porque menina não faz isso; não merece o prazer que o seu corpo pode lhe dar. Quando nova, a menina chorava ao ter o joelho ralado na brincadeira de rua; logo era consolada pelos pais, mas que a lembravam logo que esse tipo de brincadeira não era adequada para meninas. Quando o irmão passava pela mesma coisa, seu pai dizia para parar de frescura, porque homens não choram e aquele era apenas um machucadinho.
A sociedade está cheia dessas crianças da educação "igualitária". Mais tarde, a garota se torna mãe solteira. Se ela resolve abortar, é uma puta sem coração. Porque ela errou, mas deveria ter arcado com as consequências. Porque "na hora de fazer" ela não se importou. Mas se ela resolve ir à luta e educar a criança sozinha, fazendo seu melhor para suprir necessidades materiais e emocionais de seu filho, ainda assim dizem que "ela precisa de um homem, mas não vai conseguir casar assim". Já quando o homem resolve criar sozinho seu filho, se torna praticamente um heroi da sociedade, e todos se compadecem, porque ele foi vítima de uma puta que não teve a mesma fibra moral para assumir as consequências da maternidade. Raros são aqueles que se lembram que as crianças não são concebidas sozinhas; que são necessários um óvulo e um espermatozóide, e que aquela história da sementinha plantada na barriga da mãe é tão cientificamente válida quanto a história da cegonha. Nessa sociedade, algumas pessoas gostam de dizer que são "o espermatozóide vencedor", apenas se esquecem que o tal campeão carregou apenas metade da carga genética delas.
Nessa sociedade, tudo é justificado pela "falta de pênis". A mulher estuda e trabalha durante toda a vida para comprar seu apartamento e seu carro; paga suas contas e ainda reserva um dinheiro para viajar e conhecer o mundo. Se sente realizada no que faz, mas as amigas da sua mãe sabem que ela esconde frustração como sujeira embaixo do tapete, porque uma vida sem marido não é completa. Já um casal de namoradas lésbicas não consegue passar uma hora em um bar sem que algum cara apareça sugerindo que elas precisam dele para a diversão ser completa. A mulher não pode nem mesmo se sentir irritada, porque ou é TPM ou é falta de pênis. Já o homem... É totalmente incentivado a permanecer solteiro e assim aproveitar a vida. Os amigos casados enfatizam o quanto lhe invejam. Basicamente, pode-se resumir tudo isso numa simples e errática ideia: a mulher só deve ter uma vida sexual dentro do casamento, só terá uma vida plena se casar, e a união será vantajosa apenas para ela, já que o cara será "acorrentado".
Nessa sociedade, o homem com calor tira a camisa, e a mulher com calor é vadia por usar uma roupa mais curta.
Nessa sociedade, o homem urina nas ruas, mas pouca vergonha é uma mulher amamentar em público.
Nessa sociedade, a mulher obviamente pediu para ser estuprada, com essas roupas curtas.
A menina aprendeu a andar com spray de pimenta, a se cobrir de roupas até o pescoço, a não sair sozinha, a não andar por ruas desertas e não responder provocações. Mas o menino não ouviu dos pais que quando uma garota diz "não", significa "não".
Você acha que essa sociedade é mesmo igualitária, só porque hoje mulheres podem trabalhar fora? Acha que suas lutas já acabaram? Se suas respostas foram negativas, tenho uma notícia: você é feminista. Eu mesma não "virei" feminista, apenas me descobri assim. Porque nessa sociedade ainda é ruim você se declarar "ista", seja lá qual for o prefixo. Porque assim que você se declarar feminista, logo alguém dirá que na hora de pagar menos na balada ninguém é (como se as feministas fossem a favor disso). A questão não é se você quer casar ou não, se você gosta de usar roupas curtas ou não. A questão é se você gosta de liberdade ou não.


E só pra reforçar...

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